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terça-feira, 27 de julho de 2010

O Shire




A primeira vez que cheguei eu espantei: parecia o Shire.
E eu pensei: quero morar aqui. Mas foi só pensar mesmo. Morar, só algum tempo depois, e foi de repente. Num dia cidade, no outro Shire.
Chegamos em época ruim: a chuvosa. Casa de caboclo, pequena, cheia de móveis de casa grande, na city. Ficaram espalhados pelas varandas de vizinhos amistosos, que esperaram pacientemente a casa no alto da montanha ficar pronta. Foram meses de desespero, saber que os cães e gatos e animais de toda espécie estavam usando os móveis espalhados como moradia e banheiro.. Foi realmente um exercício de desprendimento...

Mas passei um ano maravilhoso lá. Aprendi que tá tudo bem. Perdeu? Sujou? Queimou? (city 110W, mato 220W... Entendeu?)
Vamos ouvir o som do ribeirão que passa ao lado, que vai dar tudo certo...E deu!!

Um dia, de biquini e botão de borracha até os joelhos por causa de cobras, eu ouço um barulho de unhas no chão de cimento queimado da minha cozinha. E solto uma exclamação que acaba por espantar o maior lagarto que eu ja vi na vida. Lindo. Amei.

Passei minha primeira Enchente da Goiaba lá na casinha. Foi uma experiência maravilhosa. Minha terra é margeada pelo Rio do Peixe, por um ribeirão que vem de cima, e pelo riachinho que é do resto de água que sai de uma mina dágua. Na enchente da Goiaba (na época em que as goiabeiras estão carregadas, lá por fevereiro) as águas "crescem" e se juntam, formando uma corredeira louca que leva pro Rio do Peixe tudo o que encontra solto no caminho. Meu banquinho verde foi parar do outro lado da margem. Está agora no seco, longe de cursos d'água

Lá na casinha vivi dias fortes, de adaptação obrigatória, pois já não tinha para onde correr. E o interior é outro planeta, cheio de diferenças grandes que devem ser entendidas, e obstáculos que aparecem diariamente que são vencidos, superados. É mesmo como ir para outro planeta.

Mas sabe de uma coisa???Fica difícil encontrar em mim um único motivo para desistir desta experiência. Isso foi verdade na época, e continua atual agora: enfrentar dificuldades na roça é diário. Isso despertou em mim a Lara Croft adormecida. Vir pro Shire foi a melhor coisa que eu fiz na minha vida.

Depois que a casa da montanha ficou pronta, eu me mudei. Levamos nossas tralhas materiais lá pra cima da Montanha Verde, onde mora o arco-íris.

Mas... esta é outra estória.

Festa na Roça


Foi convite assim, meio em cima da hora...aliás, aqui ninguém tem pressa pra nada.
Ficam parados horas, de prosa com um passante, fumando um cigarrinho, falando dos vizinhos.
E tem sempre um cãozinho do lado. Engraçado que todo mundo aqui tem seu mascote, que segue o dono por toda parte.
É normal ver o cachorro correndo junto com o cavalo, seguindo o dono pela estrada afora.
Já vi meu vizinho tocando o gadinho magro montado num escort velho, mas lá fora, no chão empoeirado, os cachorros, ajudando.

Até meu cachorro segue meu carro qdo saio da propriedade, o que é um problema pra mim.
Não quero meu cachorro correndo pela estrada afora, seguindo um carro, nem sendo atropelado por caminhões.
Uma coisa que sinto falta nos livros do Tolkien é a falta de animais de estimação.
Afora Huan, pouco se fala de animais de estimação...engraçado como no dia-a-dia aqui eles são indispensáveis.
Mas o assunto era pressa, e eu também não tenho muita pressa de chegar.
Mas cheguei. O convite era pra uma festa, no sitio da Andréa lá na estrada do Machado.
"Acho que vão tocar rock", disse a voz do Bambuíra ao fundo.
Bem, eu fui pra conferir a tal festa no sitio, onde iam tocar rock.
Cheguei e fui me agradando da festa. Gente nova pra mim, comida da roça,
pinhão, batidas de frutas diversas, muita risada, criança correndo, adultos em roda...e lá no fundo, a surpresa:
os meninos que durante o dia roçam pra ganhar um $$, estavam lá, tocando um rock de primeira, que me fez perder o ar. O Cara da guitarra tocava de costas, com a boca, raspou as cordas da guitarra no cabo do microfone, e tirou um gemido longo e doloroso, que fez minha alma voar...que era aquilo, no meio da mata?

O som se expandia no escuro, espalhando aquele gemido..e eu não acreditei quando aquele moço, de uns 14 anos, sentou na batera e começou a brincar com os pauzinhos...nossa..nem a chuva impediu que a festa fosse ate 4 da manha, la na varanda, com tudo improvisado.

Só na roça eu vejo isso. O Fred, mãos de enxada, gente, cara rústico, segurava aquele braço do violão com uma leveza de anjo...Anjo mal, que sabe tocar com a ponta dos dedos, as cordas da alma.

Amo a roça. Amo o rústico, amo a surpresa que quebra o paradigma.

Quem disse que caipira não fala inglês? Tava lá, Jimmy Page da roça, sublime...

E aí, vamos numa festa na casa da Andréa?

O Porco


Sabe, aqui todo mundo anda armado, ou tem armas em casa. E não pensem que são revolveres tão somente. Não.
Tem de tudo. Tem armas antigas, que foram do avô da criatura que a carrega agora, já dizendo que vai deixar para os filhos, que ja contam com ela.
E para que usam??para tudo. Principalmente caçadas, o que é absolutamente proíbido aqui.
Cães treinados desde pequenos para perseguir o animal pela noite. Daqui consigo ouvir os latidos pelas montanhas, e sei que a capivara vai dançar nesta estória.
Mas agora não vou falar de capivaras, mas de um porco selvagem, há muito comentado pelas bandas onde moro.

Mas uma dessas estórias de cozinha, que no meu dia-a-dia descobri que era real.
Pois não é que tem um porco que chega sorrateiro pela noite nas plantações e faz miséria...bem, faz o que um porco deve fazer: chafurdar, raspar o chão, arrancar raízes, comê-las. O "problema" é que a raiz em questão é daquele milho amarelinho, que foi plantado com tanto carinho, trabalhão danado pra ele germinar.

Quem nunca lidou com enxada, não sabe o duro que é cavocar a terra, tirar o mato e trazer esterco, e cobrir tudo com cisco, e deixar serenar, e depois de dias plantar, e cuidar..tudo na hora certa.
Aiii...a mandioca, amarelinha, plantada no ano passado, já linda, com seus talos compridos subindo, magia mesmo como aquele tronquinho fino pode gerar debaixo da terra uma raiz tão gostosa e macia.

E faz quatro anos que ouço falar no porco, que ataca as plantações de todos por aqui.
"Seu" Isac ficou duas noites de tocaia, com sua espingarda em punho, em cima da árvore, aguardando o bicho e nada.
Disse ele que o porco "sentiu" e foi embora.

"Seu" João Gomes fez uma cabana de mato, se tocaiou nela por várias noites, com sua arma em punho, e nada...

O porco não apareceu. "-Parece que ele sabe que nóis tá lá, de tocaia".
Fui gostando deste porco, mesmo quando minhas plantações foram atacadas por ele. E não adiantou meus cães, nem o som de guizos nas plantações, nem o fedor da blusa suada depois de dias de trabalho duro...
Lá vinha o porco, vinha e ia embora, sem que ninguém conseguisse matá-lo.
Achei que o porco era um herói. Homens armados, tocaiados e acostumados á caça, sendo enganados por um porco.
Nestes anos de roça, o porco povoou meu imaginário, como um animal saído dos contos do Mestre Tolkien.

E voces não sabem a dor que deu quando me falaram que andaram matando um porco selvagem, no bairro vizinho.
Não se sabe se era o meu "porco", mas o fato é que minha plantação de mandioca tá lá, linda, crescendo todos os dias um pouquito mais. E ninguém mais reclamou de ter sua plantação destruída por ele.

Ainda hoje pergunto da plantação, se foi mexida durante a noite. Não falo pra ninguém que é do porco que quero ouvir notícias.

Que doido, né??? Sinto falta deste porco.

O "Corpo Seco"

Quando eu cheguei aqui, fui numa reunião dos vizinhos. Nada demais. Boas vindas.
Casa caipira, vinho Natal, um queijo feito em casa, café saído de um fogão a lenha, numa cafeteira azul, tudo em cima de mesa simples de madeira, com toalha branca. Gente simpática. Foram logo falando das "coisas da roça".

Primeiro, cuidar bem ao andar de noite pelas estradas na roça, por causa do "CORPO SECO".
Corpo seco?, perguntei. Nunca ouvira falar.
Juraram que "fulano" era corpo seco. Filho de "siclana". Matou a mãe, e o pior aconteceu.

Como castigo divino, o corpo do moço secou quase até o esqueleto, mas ficou pesado, tão pesado com o peso da culpa que ele não pode mais andar sozinho. Fica escondido num canto escuro da estrada, esqueletoso e pesado, com fome eterna.

Se ele pedir ajuda a algum transeunte, este deve parar e carregar o corpo seco nas costas ate onde ele quer ir. Senão ajudar, fica doente.
E não adianta dar comida. Corpo seco esta sempre com fome.Fome que não se mata nunca.

Mas fico pensando. Me lembrei do Góllum.

Achei alguma semelhança na alteração que o odio faz no ser e como isso é "sentido" pelo imaginário popular.
Tolkien e os "antigos" da roça foram buscar no mesmo "inconsciente coletivo" a figura do atormentado.

Eu ando de noite por ai, de lanterna, com meus cães fiéis... Olho firme, se algum barulho me chama a atenção. Sei lá... e se for o Corpo Seco???