Não tenho motivos para confundir sonhos(1), destes que são debulhados em consultórios de psicanálise, destes que se tem certeza que são sonhos, com sonhos(2), daqueles que se acorda com a incrível sensação que aquele ser, diferente em tudo, era eu mesma. Deste segundo grupo de sonhos, eu tenho alguns para compartilhar. Não tem nenhuma lição de moral, não tem nenhuma ligação (aparente) com tudo o que vivi na época, que poderia despertar sonhos deste tipo. Não tem fins claros; acabam de repente.
Voltam em minha mente, de quando em quando.
Vou contar alguns aqui. Farão parte desta série.
Voltam em minha mente, de quando em quando.
Vou contar alguns aqui. Farão parte desta série.
O Rei morreu.
Minha consciência despertou em um outro lugar, que não minha casa quente e confortável num bairro de classe média de São Paulo. Era um palácio de pedra fria (destes que se vê em filmes). O frio entrava pelos meus pés, mal vestidos, que deixavam o frio subir pelas pernas. Meu corpo todo era gelado.
Não sei se eu era homem ou mulher. Nestes sonhos, a informação vem como algo certo. Mas eu estava confusa. Não sabia como eu estava lá.
Era noitinha. Eu estava vestida como um bobo da corte. Algo assim. Roupas coloridas. Minha única roupa. Isso eu sabia. Quando ela se acabava, eu ganhava outra igual. Por anos eu vesti aquilo. Não era um bobo da corte, nem tinha direito algum de falar verdades. Seguia o rei como um animal segue seu dono. Eu ouvia e via coisas que o rei fazia. Seguia seus passos. Ajudava com suas necessidades, fazia-o rir quando ele queria rir. Mas jamais poderia ousar falar sem permissão, nem dizer aquilo que o rei deveria ouvir.
Coisa engraçada. Nestes sonhos, meu coração estava tão claro. Podia sentir tudo o que aquela criatura sentia pela condição em que se encontrava. Uma solidão imensa, sem amigos, sem amor ou carinho. Nada era meu. Nada me pertencia. Eu não tinha nada, e eu não era nada. Não tinha nome, nem vontade. Tinha apenas frio e medo. Medo de pertencer a alguém que, por certo, não tinha o direito divino de assumir vidas humanas.
Eu dormia no chão, ao lado da cama do rei. A rainha dormia do outro lado da cama. Eu dormia no tapete, bem embaixo da cama. Não sei por quanto tempo eu fiz aquilo. Naqueles dias, eu acompanhava a luta da rainha e dos médicos reais em ajudar o rei a respirar. Eu ouvia sua respiração ofegante. Sua enorme falta de ar. A cada barulho do ar que tentava entrar e não conseguia, eu temia pela minha própria respiração.
Na noite do sonho, eu me deitei no tapete. A rainha havia comentado comigo para que ficasse acordado naquela noite, pois o rei precisava de acompanhamento. Eu não podia dormir.
E naquela mesma noite, eu levantei do chão frio do quarto luxuoso do real casal, e olhei para o rei. Lembro apenas que acompanhei sua respiração acabar dentro do peito. Acordei a rainha, e mostrei o rei, morrendo na cama.
Não olhei mais para o real casal. Enquanto ela se movia pelo quarto, chamando pelos médicos reais, eu fui até uma pequena e fina janela, do lado da cama, e coloquei minha cabeça para fora, sentindo o ar gelado da noite. Uma noite linda, cheia de estrelas.
Enchi meus pulmões de ar, como se quisesse me certificar que eu podia enche-los de ar, e, na noite escura e fria, eu gritei pela janela:
"-O Rei morreeeeeeuuuuuuuuu!".
"-O Rei morreeeeeeuuuuuuuuu!".
Aos poucos, as casas do burgo, em torno do castelo, foram acendendo tochas nas portas. Lá de cima do castelo, na pequena janela de pedra, eu via as luzes aos poucos iluminando as casas.
Acordei com o som da voz gritando ainda em meus ouvidos que o rei havia morrido.
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