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quarta-feira, 28 de julho de 2010

Tufão na Roça


"Vivo a enebriante liberdade de escrever sobre o que vivo"..esta frase permeia meu universo interior.. A lí em um blog, perdão por nao lembrar mais onde foi...

Sou uma privilegiada. Num universo de analfabetos, semi-analfabetos, cegos que não veem o mundo ao redor,eu me sinto rainha em terra de cegos.
Sentada de costas para a porta de vidro, eu só ouvi o barulho. Olhei pela porta e vi a chuva chegar, mas levei alguns segundos para descobrir de onde vinha o barulho..um barulho que eu nunca ouvi antes..até agora, escrevendo estas linhas, eu me arrepio com a lembrança daquele som. Talvez seja uma das coisas que eu jamais esquecerei.

Deu tempo de pegar o pote da ração dos gatos, fechar a porta de vidro e sair pela casa, fechando o resto.Mas foi só o que eu consegui fazer.
O vento veio..e com ele a destruição como nunca havia visto.
As cadeiras e redes da varanda se foram pelo ar, junto com arvores e pedaços de galhos enormes..tudo voava ao som daquele barulho louco..e a chuva..pouca agua, mas violenta..louca..a janela quebrou e junto com os vidros, levou os apetrechos da lareira,,molhou quadros, sofá, instrumentos musicais.

E aquele som, maravilhoso, louco, me assustava e encantava...não somos nada..nada..tentei abrir a porta, sair de casa, e não consegui abri-la..achei que havia alguém fazendo força pra ela ficar fechada..era a força do vento, que me impediu de abri-la. Não deu. Não consegui fazer mais nada..parei no meio da sala, achando que restaria pouco pra limpar depois do tufão ter passado.
Deve ter durando poucos minutos.

Mas foram intensos. As arvores estão lá..fiquei pensando nos passaros que, há pouco, eu havia visto voarem com pedras nas patinhas para fazer o ninho aqui na minha porta de entrada..tem um nicho lá, e eles todo ano, nesta época, vem aqui para nidificar...
Agora chove. Coloquei uma lona no lugar da janela quebrada, e estou catando os destroços de arvores e outros itens que voaram pela sala afora.
Minha gata miava grosso..eu tb miaria grosso se pudesse soltar algum som pela boca aberta de medo.
Vivo a inebriante aventura de escrever sobre o que vivo.
Sou uma privilegiada, num mundo de poluição e cinza...eu sobrevivi a um tufão na roça...
o resto..o resto é conversa para depois, no fogão a lenha, já com a casa seca.

e viva a roça, minha gente...

O Planeta Talira


Naqueles dias do acontecimento, eu trabalhava com computadores Era uma empresa pequena, quase caseira, que desenvolvia os primeiros pcs, com um sistema operacional que permitia rede, era um avanço.
Eu trabalhava com o Software da máquina e dava os cursos de operação. Requisitei um ajudante.
Foi ai que o Ronaldo entrou na estória. Era programador e tínhamos muito trabalho. Ficávamos a maior parte de nossas vidas naquele cpd gelado. E ele foi, aos poucos se abrindo. Mostrou-me dezenas de mapas inter-galáticos, feitos por ele, marcando trajetórias de viagens. Livros manuscritos com milhares de páginas, contando a estória de um planeta chamada Talira, de povo pacífico. Foram atacados por planeta belicoso. Estória manjada, mas os descritivos das famílias, dos costumes, das escritas, dos números, alfabeto, brasões, arvores genealógicas, tudo absolutamente detalhado. Uma outra dimensão. Ele trazia cada vez mais coisas ao cpd, amontoando uma riqueza no canto frio, me dando o que pensar. Era tudo muito rico...

E um dia, eu sonhei. Sonhei que me colocavam na frente de uma mesa em forma de lua crescente num rico salão de mármore. Na mesa sentavam 13 homens. Um bem no meio, que lembrava o Galdalf, e seis de cada lado dele, todos anciãos. E o do meio me chamou de um nome estranho (que eu não me lembro) e disse "Fulana...nós somos do 13º Conselho de Anciãos de Talira" e você esta aqui ..." e acordei.

Acordei, escrevi o nome que me chamavam no sonho num papel, junto com o nome do Conselho,
tomei banho e saí correndo pro trabalho. Estava louca pra chegar e contar pro Ronaldo,
embora soubesse que ele só chegava, sempre, depois das 10:00 da manhã...Por isso assustei
quando vi o Ronaldo, de costas pra porta de vidro, já debruçado numa listagem de programa em cobol, procurando por uma vírgula fora do lugar.

E o diálogo a seguir conta bem próximo da realidade o que aconteceu:
"-Ronaldo, tenho uma coisa pra te contar, vc nem vai acreditar!
-Eu sei- disse ele.
-Como assim "eu sei"...pois acaba de acontecer...
-Mas eu já sei."

Virou-se para mim e com os olhos cheios de água ele foi se aproximando de mim e dizendo:
"-Voce sonhou com o 13º Conselho de Anciãos de Talira".
E quando chegou bem perto de mim, ele disse olhando nos meus olhos:
"-Fulana (o mesmo nome do sonho), voce esta se lembrando".

E ai, eu fiquei muitoooooo assustada. Meu coração veio parar na boca, não havia área do meu corpo que não tremesse, e no meio do medo, eu só consegui rasgar o papel onde havia anotado o meu nome ( o que hj me arrependo) e lembro de ter pedido a ele que nunca mais tocasse no assunto.
Nunca mais ouvi falar sobre Talira, sua saga, sua viagem ate o planeta Terra, suas naves mães estacionadas em Io, Saturno. e nossas naves de pouso ainda escondidas debaixo das areias escaldantes do Egito. A riqueza de material foi aos poucos desaparecendo do cpd, até que não tivesse mais nada.

Semanas depois, o Ronaldo desapareceu e nunca mais ouvi falar do Ronaldo.

Bem, é quase nunca mais...Mas uma pena que meu medo me paralisou.
Perdi uma grande oportunidade na minha vida de viajar em outra dimensão.

Aprendi que o medo paralisa a alma...
Como eu li no livro "Duna", "..o medo é a pequena morte da mente..."

E minha mente morreu um pouco naquele dia.
Pena pra mim...

Pintura da alma


Eu trabalhava com computadores, depois mudei de vida. Aprendi pintura e fui dar aulas..por mais de 18 anos.. e foi maravilhoso. Pelas centenas de quadros que passaram pelo meu atelier, eu conheci dezenas de pessoas por dentro, na intimidade desconhecida ate de quem pinta. Casos tão interessantes de transformações radicais, depois que a janela da alma mostrou alguma
informação da casa interior.

Eu tinha uma aluna que só pintava casario. Acabava ano, entrava ano, e la estava ela pintando paredes e janelas retas, telhados com telhas em detalhes, tudo certinho, tudo simétrico, nada fora do lugar. De vez em quando, arriscava uma natureza morta, pelos mesmos motivos: tudo certo, tudo no lugar.

E ai eu disse: "-Próximo quadro vai ser abstrato". Não ouve um momento de silencio, não. Foi eu terminar a frase, ela começou a dizer em voz alta que não dava, que eu estava sendo louca de querer isso, que ela ia passar muito mal, de pintar algo sem contornos precisos....e eu disse: próximo quadro vai ser abstrato. Voce escolhe o motivo.

Ai eu ajudei.
Fiquei com dó da expressão assustada da mulher. Um fundo de mar, arrisquei. Nem tão abstrato, assim, mas mais impalpável, mais mutável...eu queria que ela saisse do quadrado. Ela veio na proxima aula nervosa, cabeça doía, não sabia porque estava lá.

Usamos massa corrida, objetos diversos pra colar na tela, lúdico, macio, gostoso, diverso da dor imaginada pela falta de contornos. As aulas foram passando...Ela foi me contando que desde que
começou a pintar aquele quadro, ela estava mudando.

Percebia o corte novo no cabelo, a cor mais pro ruivo...ela passou a responder as críticas mais prontamente..estava mais segura. No final, seu quadro estava lindo. Um belo fundo de mar, escuro no fundo, mas com a promessa de luz vinda de raios por cima..e nadando no mar lindos peixes coloridos. E ela também estava radiante. Eu sabia que lá dentro, o pincel havia dito ao espírito que poderia ousar sem medo.

Eu ficava maravilhada. Nunca mais pintou casarios. Agora estava voando em outras expressões.
Fazer coisas novas, por mais pequenas que sejam , podem transformar a alma..

Que coisas novas você fez hj?? E eu??

O ano em que Jimmy morreu


Naquele ano fui passar as ferias na casa da minha tia no Rio de Janeiro.
Eu não gostava muito porque lá não tinha nada pra fazer. Minha prima tem 10 anos a mais do que eu, e eu detestava ficar naquele apto sem fazer nada. Eu tinha 6 anos na época e praia só com "as velhas"...acabei ficando doente.
Uma gripe forte, daquelas que derrubam mesmo. fui pro quarto da prima, deitar nas almofadas, enquanto as "velhas" ficavam na sala, conversando.
Tava quase dormindo quando ouvi a porta do quarto abrir e minha prima entrou com uns amigos. Sentaram-se num canto da sala, em roda. Ela veio ver se eu estava realmente dormindo...eu finji que sim...atriz de qualidade inegável, enganei a todos.
Ela foi sentar-se na roda dizendo que eu estava adormecida profundamente.
Assim camuflada, pude abrir meus olhos bem lentamente ate um ponto em que conseguia enchergar sem dar bandeira, sabe???
E percebi que rodava algo, que cheirava forte, entre eles...Fumavam maconha, rindo e chorando juntos. Falavam do sentido da vida, da certeza da morte, de aproveitar as oportunidades, do medo de enfrentar as conseqüências, da juventude e velhice...e fumaram muito, e riram e choraram muito. E um nome era ouvido de vez em quando: Jim Morrisom.

Na época eu não entendia nada...
Depois eu cresci, e soube que naquele dia morria Jim Morrisom.
Conheci The Doors alguns anos mais tarde, e juntei dois mais dois.
Hoje sou fã de carteirinha deste lizard que era fã de tolkien e viagens psicodélicas.
Engraçado que ainda ouço os mesmos questionamentos...ainda hoje, choro e dou risada com amigos falando sobre os mesmos assuntos que circularam junto com a maconha naquele círculo de amigos, há tanto tempo atrás...
Nada mudou. Bem, muito mudou nestes anos, mas a essencia do humano continua lá, um mistério...e essa busca pelo desconhecido interior move muitos.
No fim, subir minha montanha tem muito a ver com isso..me conhecer, saber meus medos, limites, fraquezas e forças.

Dizer pra Vida: common baby and let my fire!!!

Floresta Encantada

Minha terra era pasto. Já foi Floresta da Mata Atlântica, mas caiu pra fazer carvão. Porque as pessoas precisam comer, precisam comprar roupas e remédios, precisam se alimentar. Mas, como disse Bertrand Russell, "Precisamos cuidar do mundo que não veremos".
E aqui na Santa Roça, nada disso acontece. A árvore não tem valor. Não se pensa no mundo futuro, por que??Porque simplesmente ninguém sabe que a árvore faz parte do futuro. Que sem elas, não tem futuro.
Meu vizinho jogou mata-mato na beira do rio, no lado da margem dele. Fui lá falar com ele. Isso ja faz dois anos. Ele continua a fazer isso, e não fala mais comigo. Tudo bem. Eu não teria assunto a tratar com este homem.
Mas acontece que eu preciso falar. Primeiro porque dói na minha alma, e depois porque eu sofro as conseqüências deste desmatamento da margem esquerda do Rio do Peixe. Este lindo Rio tem cheias constantes na época das chuvas, época que já está acabando. Estas cheias invadem minhas terras, e todas as ribeirinhas.
Até ai, nestes quatro anos de Shire, sempre foi um show da Natureza. Jim Morrison que me perdoe, mas um tesão de show...só que este ano, o açoreamento foi demais de ruim. Encheu minha terra de areia, levou boa parte do terreno do vizinho, espalhando grande quantidade de terra no fundo do rio, tornando esta passagem estreita, fazendo as águas subirem mais.
Ou seja, mais áreas sendo devastadas pela enorme quantidade de água que sobe.
E o que tem tudo isso com Floresta Encantada? Tudo, eu digo. Final do ano passado, reflorestamos as terras com a ajuda de uma ONG. 3.400 mudas plantadas, que serão cuidadas por dois anos. Com estas enchentes, estas mudas estão cheias de areia e barro, e outras tantas foram arrastadas pelas recentes cheias...
Minha Floresta Encantada...sendo arrastada pela força do Rio do Peixe...bem, parte dela!
Mas eu sei semear. Colocar uma semente num montinho de terra e água. Paciência. Mais água. Mais paciência. Broto.
Mais água e paciência...e quando menos se espera a muda cresceu e esta pronta pro replantio. E ai, mais paciência, por que é assim que se encantam florestas...

Festa Literária


Começou com a estrada...o povo aqui ate estranhou..há tantos anos ninguém ligava pra esta estrada..tinha buraco atrás de buraco;uns remendados outros escancarados....E acabava ano entrava ano e nada de arrumar.

De repente, caminhão a não poder mais..com pedronas, pedrinhas, asfalto novo..cheiro de pixe no ar..os cães curiosos.. apareciam pra ver que era aquilo..e tinha gente tb..nunca tinham visto "fazer asfalto".

Ficou pronto na sexta-feira. No sábado, o helicóptero do Serra baixou na roça. Hoje fui no supermercado da dona Maria e ela disse: "-Os homé olharam nóis la de cima.tinha que vir aqui no chão, pra ver como é bão...". E riu. Foi ela que perdeu tudo no supermercado quando o rio encheu e deixou a praça do coreto debaixo dágua..Não apareceu ninguem pra ajudar..só nós mesmo.. vizinhos!

Mas neste sábado a praça do coreto tava em roupa de gala..tinha gente de fora...Loyola, Serra, gente "de berço", com carrão todo preto, último modelo, estacionado na praça, que nunca viu tanta gente. Feira Cultural, Literária, com autores do Vale, de Sampa, do mundo.

Tinha câmeras da Cultura, da Globo..tinha gente de montão..que eu nunca vi. Comeram bolinho caipira, famoso aqui da região, de farinha de milho e carne moida com gengibre..tomaram quentão e vinho quente.

Mas sabem o que tava faltando? O povo da roça, gente. Não foi ninguém. Fiquei horas por lá, procurando Dona Maria, "seu" Isaías, "Seu" João do Açougue, Dona Olivia, a Queila com a criançada...nem o Cowboy do Xandinho tava lá com seus cavalos pra alugar. Não sei o que deu neste povo da cidade, que vem comemorar livro na roça e esquece do "povo da roça".

Povo que não sabe escrever, que tem vergonha de ser quem se é...seja homem ou mulher, criança ou velho, é obra de arte, marcado na pele enrugada prematuramente pelo sol e pela enxada puxada desde cedo.
Gente que não foi comemorar coisa de "gente de bem". Fui embora.
Fui pra casa do Bambuíra e da Lelê que tocaram viola pro governador e sairam pelos fundos, pra não atrapalhar as conversas dos políticos.

Coisa doida. Agora fica a estrada lá, pros carrões voltarem nos finais de semana. "Seu" Isaías ainda anda pelas estradas de terra mesmo, no "pois é" vermelho que custa pra pegar.

Minha festa tem outra cara. Daquelas de tirar a palavra da boca. Fica so o sorriso de quem ta de bem com a vida. Sorriso que eu não sorri na Festa Literária.

Clipe na Roça


Mais uma dessas coisas que surgem do nada..acho que estas são as melhores.
Tem gente que não se conforma com o fato de não marcar hora, não deixar tudo na agenda, esperar até a última hora pra saber se vai não vai...Bem, as melhores coisas surgem assim, de repente. Sem avisar que vem. As ruins também, é claro. Apenas dois lados da mesma moeda.

O fato é que o Bambuíra ligou..queria saber se dava pra subir a montanha e gravar um clipe aqui em casa. Eu disse que sim, claro.
E lá vieram eles. Bambuíra e Lêle, a dupla que está na luta por reconhecimento. Ele é professor aqui na escola municipal. Nossa...conta cada uma que dá dó. Professores que não sabe ler nem escrever. Bambuíra fica lá, faz seu trabalho, e depois vira músico. Ou será que é o músico que durante o dia dá aulas? Só sei que a Lêle, esposa dele, adora.
Canta como um rouxinol, feliz da vida. Dá pra ver nos olhos dela a felicidade. Ela nasceu na roça. Linda.
Com a dupla, veio o Paulinho..que toca bateria, bongô, djanbê, maracas..o cara arrepia em muita coisa..
E veio o Fred, que durante o dia roça os pastos dos homens que tem gado. Fred é inteligente. Fala de espaço, e nem sabia que sabia tocar. Foi lá um dia, pegou no violão, e com algumas aulas já é virtuose. Toca tudo. Tava ele lá na minha sala, sentadinho, com vergonha de ocupar espaço, e quando ele toca a viola, pronto. Celeste.
E veio o Rodrigo pra filmar, com o Folgado e a Rafa. Folgado (qual é mesmo o nome dele) faz de tudo. Cozinha que é uma coisa de louco, eletricista, encanador, marcineiro, faz os pererão lá de Monteiro Lobato, pra cidade ficar bonita cheia de bonecos nas festas.
E então lá fomos nós.Puxa móveis daqui, empurra sofás pra lá, a sala ficou da hora...Tinha luz, vinho quente, tinha equipamentos de montão. Bambuíra tava feliz. Primeiro clipe, vai pra casa de cultura aqui da cidade.

E gente, ficou lindo. Folgado e Rafa ficaram no apoio, ajudando em tudo. Muitas filmagens, muito papo..eu ri demais.
E o clipe vai pra edição agora.
Só quem não gostou da festa foram os filhos do Bambuíra e da Lêle. Não querem saber de viola, nem de tocar o sertão e a Mantiqueira pro povo saber que tem mato com macaco por aqui.
Qdo ficar pronto o clipe, eu aviso. Posto em algum lugar...so pra voces verem que a turma da roça é valente, rústica, mas é também suave e sabe fazer música da boa...
E aqui na roça a vida é assim. Tem hora que não vem ninguém. Silêncio. E tem hora que vem gente..mas aqui, na minha montanha, só sobem os amigos. Quem não é de casa, não vem. Não enfrenta a subida. Dá preguiça.
E viva a roça

Cauã

Tinha gente de fora qdo o Bambuíra chegou com a família..Sabadão na roça, noite, chovia, o fogão a lenha comia solto com um caldinho verde sempre quente...lá fora sempre frio. O Inverno nas montanhas gela os ossos, molha a alma.
Lelê já foi se acomodando nas almofadas, com um chocalho e esqueceu da vida..Bambuíra já pegou na viola..e esqueceu da vida..
E lá estava ele, Cauã, nos seus 7 anos de vida e bem vivida vida...na porta de entrada, olhando pro ambiente, fazendo um reconhecimento de quem estava por lá.
Ele me deu um olá discreto. Ele é assim, só nos primeiros segundos.
Depois estava na roda, lá na sala, sentadinho no chão, conversando com as pessoas como se fossem suas amigas de longa data.
Chamou a atenção de quem não conhecia Cauã.
Eu só dei risada..já conheço este menino de longas datas.
Cauã estava contando que no domingo sairia para uma cavalgada,e que teria que acordar cedo no domingo, tipo 5 da manhã, pra arriar cavalo, se aprumar na cela (não que ele precise de nada destas coisas.. já andou muito em pêlo, pela roça adentro), com roupa de rodeio, e assim preparado, fazer parte da Cavalgada de Bom Jesus, onde tropeiros e cavaleiros se reúnem para uma cavalgada ate a igreja em Santa Bárbara, para missa e comes da roça.
Cauã vai no seu cavalo, presente do avô materno, mateiro antigo, cavaleiro que ensinou o neto a montar qdo Cauã tinha 2 anos e meio.
E aí Cauã continua suas estórias, de quando caiu do cavalo.
Sabe, neste momento eu sabia o que iria acontecer. Tudo parou. As violas silenciaram, os batuques tb. Todos os adultos na festa puzeram olhos no menino franzino sentadinho no chão. Contou que caiu não porque tivesse dois anos e meio, mas sim porque sua avó abriu a sombrinha bem na cara do cavalo, e é claro que o bicho esperneou e jogou o menino no chão, pra fugir em disparada. Disse que foi a primeira e única vez que caiu de um cavalo.
O dia do Cauã rola inteirinho procurando alguém pra andar com ele no dia seguinte de cavalo..rs..ele tá sempre perguntando se alguém vai com ele, que ele ensina..e tem sempre quem pare tudo o que faz pra gozar da companhia deste menino inteligente e esperto, que anda a cavalo como ninguém.
Não adianta não comparar com as crianças da cidade, porque são universos diferentes.
Os brinquedos de Cauã são aqueles que as musicas cantam: peão, figurinhas com amigos, coisinhas feitas com pedras e madeiras, material da mata..Cauã gosta de contar porque o porco morde forte, com perigo ate de matar.
Gosta de contar passeios na mata, onde os animais se escondem mas ele consegue rastrear, porque lhe ensinaram a seguir pegadas...
Gosta de fogão a lenha, banho no rio (banho que ele toma todos os dias quase).
Engraçado vir pra roça, em busca de paz e raízes e encontrar isso numa criança de 7 anos. Os olhos de Cauã são de paz e fogo..fogo pela vida simples, pelos cavalos, pelo peão e rios.
Se despediu cedo, avisando que iria dormir um pouco pra acordar de bem pra montar.
Levei Cauã pro quarto, montei um monte de cobertas e ele se enfiou no quentinho. Me deu um abraço,e confirmou que iria cavalgar no dia seguinte bem cedo.
Não fui ver Cauã desta vez, mas eu adivinho o menino sentado sem conter um enorme sorriso banguela no rosto branco e sardento.

Sonnets from the portuguese




Minha mãe, que Deus a tenha, era uma fã de poemas, de livros, de contos, de enciclopédias.Naquela época da minha infância, vinha uma pessoa em casa vender todo tipo de livros, verdadeiras "passagens de viagem" para qualquer lugar.


Eu era jovem quando ela comprou um livro falando sobre Grandes personalidades do nosso mundo. Tinha a estória de Kublay Khan, o neto de Gengis Khan..tinha Edson, Marconi, o casal Currie e tantos outros. Viajei por toda parte do mundo, olhando pela minha mente estes seres vivendo e marcando a estória com seus atos, suas realizações.


Amava sentar-me com este livro e viajar. Mas uma destas estórias me marcou profundamente, um nível que eu ainda não entendi. Talvez eu seja mesmo romântica, apesar de achar que romantismo é um grande erro..uma névoa que esconde a verdade, a realidade. Esta pessoa que me marcou desta forma foi a doce Elisabeth Barret, depois casada com o também poeta Browning, numa das estórias de amor mais lindas que eu já vi.


Este poema é um dos que eu mais amo, amo mesmo.. Cheguei quase a guarda-lo na mente, embora eu goste da leitura constante..amo ver com meus olhos as palavras mágicas do poema, ricamente traduzido para língua portuguesa por Manuel Bandeira.



Elizabeth Barret Browning

Sonnets from the portuguese
XLIII

How do I love thee? Let me count the ways.
I love thee to the depth and breadth and height
My soul can reach, when feeling out of sight
For the ends of Being and ideal Grace.
I love thee to the level of everyday's
Most quiet need, by sun and candlelight.
I love thee freely, as men strive for Right;
I love thee purely, as they turn from Praise.
I love thee with the passion put to use
In my old griefs, and with my childhood's faith.
I love thee with a love I seemed to lose
With my lost saints,— I love thee with the breath,
Smiles, tears, of all my life!— and, if God choose,
I shall but love thee better after death.
Amo-te quanto em largo, em alto e profundo
Minha alma alcança quando, transportada,
Sente, alongando os olhos deste mundo,
Os fins do Ser, a Graça entressonhada.
Amo-te em cada dia, hora e segundo
À luz do sol, na noite sossegada,
E é tão pura a paixão de que me inundo
Quanto o pudor dos que não pedem nada.
Amo-te com o doer das velhas penas;
Com sorrisos, com lágrimas de prece,
E a fé da minha infância, ingênua e forte.
Amo-te até nas coisas mais pequenas.
Por toda a vida. E, assim Deus o quiser,
Ainda mais te amarei depois da morte.

tradução: Manuel Bandeira








terça-feira, 27 de julho de 2010

O Shire




A primeira vez que cheguei eu espantei: parecia o Shire.
E eu pensei: quero morar aqui. Mas foi só pensar mesmo. Morar, só algum tempo depois, e foi de repente. Num dia cidade, no outro Shire.
Chegamos em época ruim: a chuvosa. Casa de caboclo, pequena, cheia de móveis de casa grande, na city. Ficaram espalhados pelas varandas de vizinhos amistosos, que esperaram pacientemente a casa no alto da montanha ficar pronta. Foram meses de desespero, saber que os cães e gatos e animais de toda espécie estavam usando os móveis espalhados como moradia e banheiro.. Foi realmente um exercício de desprendimento...

Mas passei um ano maravilhoso lá. Aprendi que tá tudo bem. Perdeu? Sujou? Queimou? (city 110W, mato 220W... Entendeu?)
Vamos ouvir o som do ribeirão que passa ao lado, que vai dar tudo certo...E deu!!

Um dia, de biquini e botão de borracha até os joelhos por causa de cobras, eu ouço um barulho de unhas no chão de cimento queimado da minha cozinha. E solto uma exclamação que acaba por espantar o maior lagarto que eu ja vi na vida. Lindo. Amei.

Passei minha primeira Enchente da Goiaba lá na casinha. Foi uma experiência maravilhosa. Minha terra é margeada pelo Rio do Peixe, por um ribeirão que vem de cima, e pelo riachinho que é do resto de água que sai de uma mina dágua. Na enchente da Goiaba (na época em que as goiabeiras estão carregadas, lá por fevereiro) as águas "crescem" e se juntam, formando uma corredeira louca que leva pro Rio do Peixe tudo o que encontra solto no caminho. Meu banquinho verde foi parar do outro lado da margem. Está agora no seco, longe de cursos d'água

Lá na casinha vivi dias fortes, de adaptação obrigatória, pois já não tinha para onde correr. E o interior é outro planeta, cheio de diferenças grandes que devem ser entendidas, e obstáculos que aparecem diariamente que são vencidos, superados. É mesmo como ir para outro planeta.

Mas sabe de uma coisa???Fica difícil encontrar em mim um único motivo para desistir desta experiência. Isso foi verdade na época, e continua atual agora: enfrentar dificuldades na roça é diário. Isso despertou em mim a Lara Croft adormecida. Vir pro Shire foi a melhor coisa que eu fiz na minha vida.

Depois que a casa da montanha ficou pronta, eu me mudei. Levamos nossas tralhas materiais lá pra cima da Montanha Verde, onde mora o arco-íris.

Mas... esta é outra estória.

Festa na Roça


Foi convite assim, meio em cima da hora...aliás, aqui ninguém tem pressa pra nada.
Ficam parados horas, de prosa com um passante, fumando um cigarrinho, falando dos vizinhos.
E tem sempre um cãozinho do lado. Engraçado que todo mundo aqui tem seu mascote, que segue o dono por toda parte.
É normal ver o cachorro correndo junto com o cavalo, seguindo o dono pela estrada afora.
Já vi meu vizinho tocando o gadinho magro montado num escort velho, mas lá fora, no chão empoeirado, os cachorros, ajudando.

Até meu cachorro segue meu carro qdo saio da propriedade, o que é um problema pra mim.
Não quero meu cachorro correndo pela estrada afora, seguindo um carro, nem sendo atropelado por caminhões.
Uma coisa que sinto falta nos livros do Tolkien é a falta de animais de estimação.
Afora Huan, pouco se fala de animais de estimação...engraçado como no dia-a-dia aqui eles são indispensáveis.
Mas o assunto era pressa, e eu também não tenho muita pressa de chegar.
Mas cheguei. O convite era pra uma festa, no sitio da Andréa lá na estrada do Machado.
"Acho que vão tocar rock", disse a voz do Bambuíra ao fundo.
Bem, eu fui pra conferir a tal festa no sitio, onde iam tocar rock.
Cheguei e fui me agradando da festa. Gente nova pra mim, comida da roça,
pinhão, batidas de frutas diversas, muita risada, criança correndo, adultos em roda...e lá no fundo, a surpresa:
os meninos que durante o dia roçam pra ganhar um $$, estavam lá, tocando um rock de primeira, que me fez perder o ar. O Cara da guitarra tocava de costas, com a boca, raspou as cordas da guitarra no cabo do microfone, e tirou um gemido longo e doloroso, que fez minha alma voar...que era aquilo, no meio da mata?

O som se expandia no escuro, espalhando aquele gemido..e eu não acreditei quando aquele moço, de uns 14 anos, sentou na batera e começou a brincar com os pauzinhos...nossa..nem a chuva impediu que a festa fosse ate 4 da manha, la na varanda, com tudo improvisado.

Só na roça eu vejo isso. O Fred, mãos de enxada, gente, cara rústico, segurava aquele braço do violão com uma leveza de anjo...Anjo mal, que sabe tocar com a ponta dos dedos, as cordas da alma.

Amo a roça. Amo o rústico, amo a surpresa que quebra o paradigma.

Quem disse que caipira não fala inglês? Tava lá, Jimmy Page da roça, sublime...

E aí, vamos numa festa na casa da Andréa?

O Porco


Sabe, aqui todo mundo anda armado, ou tem armas em casa. E não pensem que são revolveres tão somente. Não.
Tem de tudo. Tem armas antigas, que foram do avô da criatura que a carrega agora, já dizendo que vai deixar para os filhos, que ja contam com ela.
E para que usam??para tudo. Principalmente caçadas, o que é absolutamente proíbido aqui.
Cães treinados desde pequenos para perseguir o animal pela noite. Daqui consigo ouvir os latidos pelas montanhas, e sei que a capivara vai dançar nesta estória.
Mas agora não vou falar de capivaras, mas de um porco selvagem, há muito comentado pelas bandas onde moro.

Mas uma dessas estórias de cozinha, que no meu dia-a-dia descobri que era real.
Pois não é que tem um porco que chega sorrateiro pela noite nas plantações e faz miséria...bem, faz o que um porco deve fazer: chafurdar, raspar o chão, arrancar raízes, comê-las. O "problema" é que a raiz em questão é daquele milho amarelinho, que foi plantado com tanto carinho, trabalhão danado pra ele germinar.

Quem nunca lidou com enxada, não sabe o duro que é cavocar a terra, tirar o mato e trazer esterco, e cobrir tudo com cisco, e deixar serenar, e depois de dias plantar, e cuidar..tudo na hora certa.
Aiii...a mandioca, amarelinha, plantada no ano passado, já linda, com seus talos compridos subindo, magia mesmo como aquele tronquinho fino pode gerar debaixo da terra uma raiz tão gostosa e macia.

E faz quatro anos que ouço falar no porco, que ataca as plantações de todos por aqui.
"Seu" Isac ficou duas noites de tocaia, com sua espingarda em punho, em cima da árvore, aguardando o bicho e nada.
Disse ele que o porco "sentiu" e foi embora.

"Seu" João Gomes fez uma cabana de mato, se tocaiou nela por várias noites, com sua arma em punho, e nada...

O porco não apareceu. "-Parece que ele sabe que nóis tá lá, de tocaia".
Fui gostando deste porco, mesmo quando minhas plantações foram atacadas por ele. E não adiantou meus cães, nem o som de guizos nas plantações, nem o fedor da blusa suada depois de dias de trabalho duro...
Lá vinha o porco, vinha e ia embora, sem que ninguém conseguisse matá-lo.
Achei que o porco era um herói. Homens armados, tocaiados e acostumados á caça, sendo enganados por um porco.
Nestes anos de roça, o porco povoou meu imaginário, como um animal saído dos contos do Mestre Tolkien.

E voces não sabem a dor que deu quando me falaram que andaram matando um porco selvagem, no bairro vizinho.
Não se sabe se era o meu "porco", mas o fato é que minha plantação de mandioca tá lá, linda, crescendo todos os dias um pouquito mais. E ninguém mais reclamou de ter sua plantação destruída por ele.

Ainda hoje pergunto da plantação, se foi mexida durante a noite. Não falo pra ninguém que é do porco que quero ouvir notícias.

Que doido, né??? Sinto falta deste porco.

O "Corpo Seco"

Quando eu cheguei aqui, fui numa reunião dos vizinhos. Nada demais. Boas vindas.
Casa caipira, vinho Natal, um queijo feito em casa, café saído de um fogão a lenha, numa cafeteira azul, tudo em cima de mesa simples de madeira, com toalha branca. Gente simpática. Foram logo falando das "coisas da roça".

Primeiro, cuidar bem ao andar de noite pelas estradas na roça, por causa do "CORPO SECO".
Corpo seco?, perguntei. Nunca ouvira falar.
Juraram que "fulano" era corpo seco. Filho de "siclana". Matou a mãe, e o pior aconteceu.

Como castigo divino, o corpo do moço secou quase até o esqueleto, mas ficou pesado, tão pesado com o peso da culpa que ele não pode mais andar sozinho. Fica escondido num canto escuro da estrada, esqueletoso e pesado, com fome eterna.

Se ele pedir ajuda a algum transeunte, este deve parar e carregar o corpo seco nas costas ate onde ele quer ir. Senão ajudar, fica doente.
E não adianta dar comida. Corpo seco esta sempre com fome.Fome que não se mata nunca.

Mas fico pensando. Me lembrei do Góllum.

Achei alguma semelhança na alteração que o odio faz no ser e como isso é "sentido" pelo imaginário popular.
Tolkien e os "antigos" da roça foram buscar no mesmo "inconsciente coletivo" a figura do atormentado.

Eu ando de noite por ai, de lanterna, com meus cães fiéis... Olho firme, se algum barulho me chama a atenção. Sei lá... e se for o Corpo Seco???